domingo, 28 de março de 2010

Clichês de desenhos de humor (1): travestismo

Em desenhos animados, quadrinhos e tiras de humor é frequente como recurso humorístico fazer uma personagem heterossexual vestir trajes do sexo social oposto ao seu. Com maior frequência são personagens masculinas com vestimentas femininas.

O que tem de engraçado nisso? Possivelmente isso cause uma quebra de expectativa: pela inversão do papel arquetípico normalmente esperado - embora o abuso o tenha tornado um clichê, sempre constituir-se-dá em uma novidade para um público renovado.

Em muitos casos, o aspecto humorístico é reforçado pelo caráter exageradamente caricatural - a personagem masculina torna-se uma personagem feminina "feia" e ainda assim atrai a atenção amorosa de outra personagem masculina. (Tal situação tornou-se tão padrão que alguns desenhos, para quebrar o clichê, mostram que as demais personagens estão plenamente conscientes de que a personagem travestida é uma farsa - e apenas esta imagina que está a enganar alguém.)

A duração do recurso em um desenho varia bastante. Quando a personagem conscientemente - embora nem sempre em caráter voluntário - traveste-se, a duração tende a ser maior, podendo se estender por toda a história. No episódio cinematográfico "Uma dama muito fina" (Chew-chew baby, 1945) do Pica-Pau (Woody Woodpecker), a personagem título da série traveste-se de mulher para ter acesso, como noiva de Leôncio (Wally Walrus), a um baquete banquete.

Pica-Pau travestido em "Uma dama muito fina", 1945, engana Leôncio. Boa parte da trama gira em torno da personagem principal evitar as investidas amorosas, enquanto se aproveita do banquete. Fonte: Wikimedia, copirraite: Walter Lantz Productions/NBC Universal.

Nos casos em que a personagem termina travestida por acidente - entra por engano em um guarda-roupas ou cai sobre um varal, p.e. -, tende a ser apenas uma piada curta - gag - sem consequência para a trama da história. Mas há, claro, exceções. O Cebolinha, em "A loira do banheiro!", 2003, por acidente acaba caracterizado como a loira fantasmagórica, no entanto, não demora para tomar proveito da situação e aprontar para cima da Mônica.

Variação do tema é a troca de sexo pela personagem em caráter temporário por algum processo: mágica, realidade alternativa, troca de mentes...

Em geral não há uma conotação homossexual - uma exceção (ainda que bastante sublimada) que podemos citar aqui é o pai de Timmy Turner de Os Padrinhos Mágicos (The Fairly Oddparents), no episódio "Miss Dimmsdale", 2003, ele ativamente tenta participar do concurso de beleza feminina da cidade. O frequente uso do recurso do travestismo nos desenhos do Pernalonga (Bugs Bunny) e Pica-Pau levam a polêmicas a respeito do comportamento sexual das personagens: por exemplo, aqui e aqui.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Uma piada (ainda) sem graça

Muniz Sodré em 25/11/2008
Observatório da Imprensa


Em jornalismo, há títulos que podem valer pelo corpo inteiro da matéria e bem o sabem os cronistas ou os historiadores do assunto. "Matou a mãe sem motivo justo", manchete publicada há cerca de meio século por um jornal carioca, vale até hoje como obra-prima de humor negro. Pode-se escrever um pequeno tratado com exemplos dessa natureza, em que se põem à prova a precisão, a concisão e a originalidade do jornalista encarregado de capturar a atenção do leitor. Trata-se de uma arte que, na França, motivou há muito tempo a criação do Prêmio Louis Rameix, destinado a recompensar no meio profissional o melhor título do ano.

Não raro, sem os grandes fogos da originalidade ou dos efeitos emocionais provocados, há títulos que valem por sua força de síntese conceitual. É o caso de "Humor só amanhã. Hoje é História", título de um artigo de Eugene Robinson, colunista do Washington Post, reproduzido pelo Globo. Discorrendo sobre como tem sido "terrível" para os comediantes a eleição de Barack Obama, toma como exemplo Don Rickles, que "praticamente inventou o estilo de humor descarado, politicamente incorreto, que é o alimento de tantos comediantes hoje". Pois bem, Rickles, segundo a coluna, estava matando o público de rir no programa de David Letterman – até tentar contar uma piada sobre o presidente eleito. Como é fato muito conhecido que Obama gosta de jogar basquete, o comediante o imaginou, "enfrentando sua primeira crise internacional, dizendo a assessores que não poderia ser interrompido porque estava ocupado jogando basquete". Ninguém riu, a piada falhou.

Por quê?

Lua-de-mel protetora

A resposta comporta uma teorização, resumida no título. É que a piada aciona o estereótipo, tipicamente americano, "negros jogando basquete". Todo estereótipo é uma espécie de condensação emocional que essencializa ou naturaliza traços atribuíveis a um grupo social, fazendo passar a idéia de que os indivíduos daquele grupo são necessariamente assim ou assado.

A idéia de que todos os negros jogam basquete, implícita no estereótipo, converte em "natureza" (logo mitifica, nos termos em que Roland Barthes definia "mito" em suas Mitologias) o que é uma característica parcial (nem todos os negros jogam basquete) e histórica, ou seja, em determinado momento da vida americana, predominam negros nas equipes de basquete.

O público não aceitou o estereótipo porque Obama ainda é história "quente" demais para ser semioticamente transformado em fria natureza. Ainda que o cidadão Barack Obama adore jogar basquete, é cedo demais para se congelar a imagem do presidente eleito no esquema fechado do clichê. "Humor só amanhã. Hoje é História": o título de Eugene Robinson (ou de quem editou a matéria) contém toda essa argumentação, mas deixando claro que não vai durar para sempre "a lua-de-mel que preserva Obama do ridículo do fim da noite". Amanhã será outra história.

Amanhã será outra história

De fato, nenhuma personalidade está a salvo do humor crítico, especialmente em um país, como os Estados Unidos, em que faz parte da tradição publicista a criação de anedotas, caricaturas e imitações de líderes políticos. Na verdade, porém, não se trata apenas dos Estados Unidos, mas de todo o Ocidente, na trilha dos antigos gregos que, ao lado da filosofia, ciência e artes, se dedicavam à criação e circulação de piadas.

Um despacho da agência Reuters, publicado na Folha de S.Paulo, dá conta da descoberta de Filogelos, um dos livros de piadas mais antigos do mundo, datado de 1.600 anos atrás. Uma delas: um homem reclama que um escravo que ele acabara de comprar estava morto. "Pelos deuses", replica o vendedor. "Quando estava comigo, ele nunca fez uma coisa dessas!"

O jornalismo contemporâneo é indissociável dessa arte que, guardadas as diferenças, se aproxima das vanguardas artísticas do início do século passado, voltadas para acabar com as hierarquias intelectuais por meio de metáforas, jogos de palavras, às vezes à beira do bestialógico. Foi assim, por exemplo, o dadaísmo, sobre o qual André Gide se manifestou: "Dada é o dilúvio após o qual tudo recomeça".

As pressões do politicamente correto e as virtuais ações de danos morais são ameaças de hoje ao pleno jogo dessa arte bem assimilada pelo jornalismo. Mas, como vaticina o título de Eugene Robinson, nada detém em termos definitivos a força do risível e amanhã será outra história.

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Veja também:

Comedy Tomorrow, History Tonight
Gregos escreveram livro de anedotas há 1.600 anos

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A teoria dos quatro humores

Na Grécia Antiga alguns homens começaram a especular sobre a natureza, a origem da vida e do universo, nascia a filosofia.

Entre outras coisas especulavam de que as coisas da natureza eram feitas, qual a substância básica que formava o mundo. Alguns diziam que era o fogo, outros que era a água, outros ainda que era a terra ou o ar. Cada um argumentava tentando demonstrar que sua visão era a correta e a dos demais errada. Uma dia, um homem chamado Empédocles (que viveu 490 e 430 a.C.) aventou que esses quatro elementos eram básicos: todas as coisas eram formadas pela mistura em diferentes proporções dessas substâncias. Hoje em dia sabemos que estavam todos errados, mais ou menos. Nenhum desses quatro elementos são básicos, mas a matéria comum da Terra e dos celestes são compostos por diferentes proporções de elementos básicos que não são quatro, mas preenchem toda a tabela periódica - mais de 110 elementos diferentes atualmente conhecidos. Se bem que podemos ir um pouco mais a fundo e ver que são três partículas subatômicas básicas que compõem esses elementos químicos: prótons, nêutrons e elétrons. Nesse nível são três elementos. Mas se formos mais a fundo veremos que prótons e nêutrons são formados por quarks. O chamado Modelo Padrão diz que há seis tipos de quarks e seis tipos de léptons - o elétron é um tipo de lépton -, mais as partículas reponsáveis pelas interações eletromagnética, nuclear forte e nuclear fraca. Se considerarmos a Teoria das Supercordas, há apenas um componente básico da matéria, cordas minúsculas cujos diferentes padrões de vibração geram as diferentes propriedades das partículas subatômicas.

Voltando aos quatro elementos gregos, essa teoria influenciou a visão de Hipócrates (460 a 377 a.C., contemporâneo, portanto, de Empédocles), considerado o pai da Medicina ocidental por seus tratados sobre a saúde e a doença. Para Hipócrates, a saúde era promovida pelo equilíbrio entre quatro humores: o sangue, a fleugma, a bile amarela (gr. kholé) e a bile negra (gr. mélaina kholé) - donde os estados de ânimo sanguíneo (violento), fleumático (apático), colérico (irado) e melancólico (triste). Esses humores estavam associados ao ar, à água, ao fogo e à terra. E também às estações do ano: primavera, inverno, verão e outono, nas quais haveria predomínio do respectivo humor.

O sangue seria armazenado no fígado e dali enviado para o coração, onde se aquece tornando-se quente e úmido. A fleuma seria produzida pelo cérebro, de natureza fria e úmida, correspondia a todas as secreções mucosas - a glândula pituitária (hipófise), presente no cérebro dos vertebrados, ganhou esse nome porque se acreditava que ela produzia a fleugma (do lat. pituita, ranho, muco). A bile amarela, quente e seca, seria produzida pelo fígado. A bile negra, fria e seca, teria origem no baço e no estômago - não há uma secreção ou líquido real no corpo que tenha relação com a bile negra, acredita-se que sua existência foi imaginada pela ocorrência de hematêmese (vômito com sangue), melena (fezes com sangue) e hematoglobinúria (urina com sangue), com o sangue oxidado conferindo uma cor escura.

A visão hipocrática atravessou eras chegando pouco alterada até o séc. 16 na Europa. A prática da sangria se firmava nela, tentando restabelecer o equilíbrio entre os humores. Bem como o uso de purgativos (laxantes), eméticos (vomitórios) e clisteres (lavagem intestinal). Pois então, era terrível ficar doente naqueles tempos: tanto pela própria enfermidade quanto pelos procedimentos terapêuticos. Não era raro a sangria matar o paciente por choque hipovolêmico (falta de sangue).

Expressões como bom humor e mau humor derivam desse modo de pensar. E a palavra humor que originalmente significava líquido - umidade é uma palavra relacionada - ganhou a idéia de estado de ânimo e, mais restritivamente, de comicidade.

Saiba mais:
Barros, J.A.C. 2002. Pensando o processo saúde doença: a que responde o modelo biomédico? Saúde e Sociedade 11(1): 67-84.